Crónica de Jorge C Ferreira
Um mundo estranho
Um alfabeto desconhecido. As letras esculpidas na pedra. Uma mulher que nunca soube ler e fala na língua escrita naquelas palavras. Uma mulher que é uma errância nos seus labirínticos caminhos. Subterrâneas galerias. Profundos sentimentos. Muitas vezes é difícil encontrá-la. Tem o mapa do ventre daquela terra na sua cabeça. Mulher astuta, intensa e pura. Os seus perfumes vêm das ervas que colhe e incendeia. Misturas sábias. Alquimia. A luz e o odor numa combinação perfeita. Os archotes da tentação. É a guardiã de um tesouro escondido. Ali vive só no silêncio mais profundo. Ali se aprende a si mesmo. Ali se descobre e se tapa com brancas túnicas.
Dizem que há deuses antigos que por ali vivem e não se deixam ver. Aquelas galerias profundas são o reduto onde se guardam as mais antigas histórias de um passado tão futuro. Os deuses são sempre belos quando representados em estátuas a que agora chamam eróticas. Como se os belos corpos não atingissem a beleza máxima na sua nudez. Deuses e Deusas. Aias e anjos. Uma biblioteca que se descobre tocando numa pedra especial, uma parede que se abre. Estantes, muitos livros e um morcego guardador de páginas. Livros muito antigos. Línguas muito estranhas. Os tais estranhos alfabetos. Um estranho mundo.
As antigas termas. Uma água que nasce das profundezas do mundo. Um mundo que nasce da guardiã destes segredos. Águas frias e águas quentes. Banhos e lascívia. Um vapor de água que nos limpa por fora e por dentro. Uma alegria que renasce. Piscinas de uma beleza inexcedível. Os corpos nus. Sacros desejos. A ausência de pecados. Assim das sombras nasce muita luz. Uma luz que ilumina os esbeltos corpos. Jogos mirabolantes. Ilusões e realidade. Aventuras que aqueles livros devem conter.
Outra pedra mágica. Outro espaço que se abre. É uma autêntica galeria de arte. Desenhos da vida e da morte. Frescos em que apetece tocar. Cenas de amor e desamor. Muitas formas de amar. Os sexos expostos e opostos. De novo figuras estranhas com asas que parecem voar. Corpos inundados de alegria e de tristeza. Tudo o que a vida continua a ter e a ser. Mais uma descoberta preciosa. Como guardar tantas estranhas maravilhas. Como não deixar devassar este espaço de uma estranha forma de religião ou civilização. Descobertas que ela suspeita não terem fim e se vê incapaz de explicar.
Subitamente uma vontade imensa de partilhar este mundo com pouca gente. Com gente capaz de guardar segredos. De chamar sábios, alquimistas, tudo num imenso segredo para evitar invasões. Sábios que consigam descodificar aqueles estranhos alfabetos. Aquela ordenação dos livros. As velas, os archotes e as ervas que continuam a perfumar este templo subterrâneo. As águas que nascem do chão. Os frescos. Aquela luz única que sombras vindas do nada vão criando, seres que parecem movimentar-se pelo espaço cru e nu.
Uma tarefa quase impossível de concretizar. Gente capaz de guardar segredos não é coisa fácil. Procurar a sabedoria e o misticismo e tornar tudo legível aos olhos do mundo. Crescia nela, no entanto, dentro dela, uma força incapaz de contrariar.
Não sei o que aconteceu mais. Aqui termino o meu relato.
«Olha, acho que estás a ficar doidinho de todo. Valha-me Deus!»
Fala da Isaurinda.
«É uma história em que junto muitas coisas. Apenas isso.»
Respondo.
«Acho que devias era ir ao médico. Isso está a ficar feio.»
De novo Isaurinda, e vai, um ar muito preocupado.
Jorge C Ferreira Março/2024(428)
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Crónica de beleza e magia. Onde os segredos são um valor imenso, cresce a vontade de reterirar o que cobrem esses belos segredos. Será mulher, ou homem, ou os dois? Os aromas que ambos produzem. A água que nasce do chão sem tempo. A iniciação. A vida. Adoro o que escreveste, a sensação de ler e inventar algo possível, no entanto experimentado. Abraço grande meu Amigo.
Obrigado Regina. Que bom ler aqui o teu comentário. Comentário assertivo. A busca do belo. A minha gratidão. Abraço.
Deliciosa esta crónica. Verdadeira alquimia de ideias. Civilização desconhecida, subterrâneos, labirintos enigmáticos. Deixo-me levar pela guardiã do tesouro escondido. Procuro a chave do Universo. Perguntas que vão ficando sem resposta. Encontro sábios que falam de civilização e religião. Uma galeria de arte de rara beleza. Longo caminho.
Adorei esta crónica.
Obrigada Amigo.
Um abraço.
Obrigado Eulália. A alquimia que brota do seu comentário. Que bom comentário. A minha imensa gratidão. Abraço
Meu Amigo, a sua Crónica é sempre uma dádiva, que chega a mim. Nem adivinha as vezes que a li.
“Um mundo estranho.” Mas maravilhoso de ler. Querido escritor, meu poeta, tudo o que conheço da sua escrita eu gosto, mas este trecho é de uma beleza única. Que momento de beleza nos relata.
A eloquência das suas palavras e a forma como nos conta tanto dessa história tão antiga, um mundo de Arte e maravilhas.
O que li é divino, meu Amigo de sábia inteligência.
Gratidão, no meu abraço.
Obrigado, Maria Luiza, querida Amiga. É tão gratificante ler os seus comentários. Genetosas e belas palavras. A minha imensa gratidão. Abraço grande
creio em templos subterrâneos onde habitam mulheres de longos e alvos
vestidos de linho…
andam em busca de si próprias.
senhoras de poções mágicas, incensos e
águas bentas.
detentoras de arcaicos e singulares
livros onde é relatado o surgimento do mundo.
vivem em labirintos visitados por
seres alados que conhecem os mistérios das estações do ano e
a natureza dos humanos.
falam o linguajar das gentes que
outrora vieram à Terra para ajudar
a incrementar o desenvolvimento
do mundo.
vivem aparte de toda a realidade
que nos cerca.
são fêmeas que têm o dom da
telepatia, levitação e dos milenares segredos das videntes.
alturas houve em que as florestas eram os seus recônditos poisos. chamaram-nas de bruxas e queimaram-lhes o corpo.
voltaram ao lugar de origem. cautelosas e advertidas.
sabem de plantas curativas, de
paraísos inexplorados e travam
demorados e íntimos diálogos com todas as criaturas não humanas.
o nosso cronista enviou-me mais dados sobre estas semi-divindades.
nada mais me perguntem pois sei
que o que parece fantasia nada mais
é do que um lugar comum não desvendado pela maioria dos habitantes desta Terra em
constante mutação.
ele apenas levantou parte do véu…
o resto será desvendado a seu tempo.
creiam pois nessas sábias e inspiradoras mulheres que zelam
por todos nós e contactaram o
escrevinhador para que fosse o
escolhido mensageiro das suas seivas,odores e cantos de mares
e florestas onde ainda é possível
Acreditar!
Obrigado, Mena. Sempre os teus belos comentários/poemas. É tão gratificante lê-los. A minha imensa gratidão. Abraço enorme
Um mundo escondido com segredos muito bem guardados são o capital que assegura um tesouro a desvendar. Um poder extraordinário foi dado àquela mulher , guardiã da arca do tesouro. O alfabeto a decifrar está apenas acessível a quem tem poderes para o fazer. Um mundo paralelo onde não faltam os livros , a cultura , mas também o prazer de águas purificadas onde se refresca o corpo ou se banham com lascívia .
Obrigado Lénea. Que bom ter aqui um comentário teu. Um comentário fruto de uma leitura perfeita. A minha imensa gratidão. Abraço enorme.